quinta-feira, 3 de maio de 2007

Cinema Nacional

Na maior parte das vezes, o cinema português passa despercebido. É então que nos surge o nome de Manoel de Oliveira, o mais destacado cineasta nacional e o mais velho realizador activo no Mundo.
Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu a 12 de Dezembro de 1908, no Porto. Provém de uma família de industriais abastados, tendo sido o seu pai o primeiro fabricante de lâmpadas em Portugal.
O seu primeiro contacto com o cinema foi quando participou como actor no filme “A canção de Lisboa”, a primeira realização sonora portuguesa, é só em 1942 que se estreia como realizador com o filme “Aniki-Bobó”, que retratava a vida das crianças nas ruas da cidade do Porto. Mas, como não obteve sucesso esperado, Manoel de Oliveira teve que abandonar os projectos de filmagens em que estava envolvido para se dedicar aos negócios da família.
Só 14 anos depois, voltou ao cinema com “O pintor e a cidade” e a partir desta data foi sempre realizando e filmando.
Apesar do reconhecimento em festivais mundialmente conhecidos, o realizador insiste em dizer que só cria filmes pelo gozo de os fazer.


Deixe-se ficar e aprecie as palavras e as opiniões deste cineasta em relação a um dos seus mais mediáticos filmes "O Quinto Império", tema muito recorrente na cultura portuguesa.

ENTREVISTA A MANOEL DE OLIVEIRA

Por Anabela Mota Ribeiro para selecções do Reader’s Digest



Manoel de Oliveira diz...
«Já soube o que era cinema. Agora, tenho mais dúvidas.»
«Um artista nunca atinge o absoluto, nem sabe o que é. A única coisa que sabemos ao certo é: ninguém nasce senão para morrer.» Isto diz Manoel de Oliveira, numa entrevista que tem como mote o fascínio por D.Sebastião e o filme que lhe deu corpo: “ O Quinto Império - Ontem como Hoje”, que estreou recentemente. O sentido, a glória, a santidade e a mundanidade, a identidade. E a poesia, a filosofia, a vida.



Manoel de Oliveira termina o café antes de iniciarmos a entrevista. Há uma luz fria de Inverno que invade a sala, e a memória recente dos almoços de domingo. Como é sabido, este é um caso excepcional de longevidade: Oliveira tem 96 anos, faz filmes desde o mudo.


Selecções do Reader`s Digest –Partamos do seu último filme, «O Quinto Império». Há uma personagem que diz: «Viver, morrer, que importa a vida sem um empreendimento que a torne maior, pelo qual se morra?» Qual é a sua maior empresa, o que é que o segura à vida?
Manoel de Oliveira – Estive agora no México e vi escrito nas paredes de um museu um pensamento dos Maias, muito simples, muito correcto, mas ao mesmo tempo perfeito, profundo. Dizia: «Semeia para colheres, colhe para comeres, come para viveres.» É um fundamento da vida. A gente vive no sentido inverso: vive para comer, come para colher e colhe porque semeia. Aqui põe-se o problema do que transcende isso.



SRD – E que é?
MO – Sempre pensei que a identidade é o fundamental. Voltando aos índios da América, estive a filmar no Brasil. A tribo que veio para filmar estava muito inquieta, não queriam demorar com medo que lhes ocupassem as terras. Não podiam ser mais do que um certo número, não podiam ser superiores ao que a terra fornecia. Afogavam os filhos, logo que nasciam, quando se sobrepunham à quantidade necessária. Mas, se estivesse baptizado o menino, já não podiam [fazê-lo], já tinha identidade. Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida. Quer dizer, é preferível morrer a perverter a dignidade.


SRD – Houve um momento, há muitos anos, em que pensou que não iria filmar mais. Disse que era preferível pôr um fim, cometer uma morte em relação àquele projecto, o cinema, do que viver com o sofrimento da insatisfação, da impossibilidade.
MO – Sem esperança não é possível. A esperança é o bordão da vida. Há uma coisa do Padre Vieira, muito bonita, em que ele fala do Non: «Terrível palavra é o non, de qualquer lado por onde se pegue, é sempre Non» – isto aparece no meu filme «Non ou a vã glória de mandar», dito por esse grande actor, o Ruy de Carvalho. A última palavra do Vieira sobre Non é: «O Non tira a esperança, que é a última coisa que a natureza deixou ao homem.» Sem esperança não se pode viver.


SRD – A esperança e o desejo são o que nos impele a fazer, a prosseguir. Mas não é supremamente difícil mantê-los vivos?
MO – O desejo não nos impele para existir. O desejo impele para a continuidade da espécie. O que nos impele à existência é o que diz o maia, «come para viveres», e isso é a fome. A fome é o que nos garante a subsistência. Se não tivéssemos fome, não comíamos, não comendo, não sobrevivíamos. Se não tivéssemos o desejo, não teríamos a relação sexual, e a relação sexual é que garante a continuidade da espécie. O desejo é uma coisa, a fome é outra. São os dois para a continuidade: um para a continuidade do indivíduo, o outro para a continuidade da espécie.


SRD – Devemos fazer uma leitura literal disso que diz ou extrapolar e fazer numa leitura metafórica? Se penso na sua longevidade, penso que o segredo é ter um fito, um sentido, ter uma coisa que o motiva e o faz sair de si para existir exteriormente, e fazer. Percebe o que estou a dizer?
MO – Percebo, mas acho que isso não há. Nada é verdadeiramente satisfatório. Mesmo a arte a que um artista é vocacionado, e sobre a qual e para a qual vive, está sempre aquém do seu desejo. Nunca atinge aquele nível, aquele andar que desejaria. Está sempre a tentar, a aproximar-se do limite das possibilidades. No fundo, do absoluto. Um absoluto que se não atinge, [que se] ignora mesmo. A única coisa que sabemos ao certo é: ninguém nasce senão para morrer. Morrer mais cedo ou morrer mais tarde. Tem esse privilégio: acabar com a vida antes do fim natural dela. Se estiver desesperado, acontece. Justamente quando perde a esperança. Quando perde a esperança, perdeu tudo, e então liquida-se.


SRD – Pensou alguma vez? Houve algum momento na sua vida tão desesperançado? Teve tantos reveses...
MO - Não. Suponho que ninguém deixa de pensar na morte. E quando se chega à minha idade, está-se mais consciente de que se aproxima o fim. Portanto, ele tem que se preparar para esse final. Há muita gente que conheci que se suicidou por isto ou por aquilo. E há o problema da eutanásia, quando o sofrimento é muito grande, a experiência é nula e as pessoas não podem sequer matar-se, têm que pedir que alguém as mate. O sofrimento é uma coisa terrível. Eu não tenho medo da morte, mas temo o sofrimento. A gente medita sobre a morte, prepara-se para ela, quer deixar tudo em condições, para poder morrer descansado. Hoje tenho essa preocupação.


SRD – Porque é que D. Sebastião é tão fascinante para si? Tive ao longo do filme a sensação de que podia transpôr para si e para a sua vida algumas daquelas equações.
MO – Acho que não. D. Sebastião é uma figura mítica. Já o Sampaio Bruno, o filósofo, tinha essa ideia do encoberto que esconde a salvação. O encoberto e o desejado, mais desejado depois de morto do que antes de nascer. Trata-se do problema da salvação, da nação ou da humanidade. A ideia de encoberto também está no mundo dos árabes. O décimo segundo irmão que sucede a Maomé nasceu e foi escondido, encoberto; só virá no Apocalipse, com Cristo, curiosamente, para combater o mal e criar a harmonia na humanidade. É a ideia de Quinto Império do Padre Vieira: um só rei, um só papa. Que é o que se pretende agora com a União Europeia. Por isso é que digo: «Quinto Império, ontem como hoje».


SRD – Essa era outra questão, o título do filme.
MO – Isto não está propriamente no livro do José Régio. Mas é histórico, e é histórico no Pessoa. É curioso que o décimo segundo, pelas minhas contas, coincide com D. Sebastião. Não sei se é o Sebastião que gera esta ideia muçulmana, se é o muçulmano que gera a ideia sebastiânica. Ora, o desejado era Cristo e ele veio com Cristo para combater o mal e criar a harmonia. É o que se pretende hoje. É o que Bush acaba de dizer: vai combater o mal e criar a liberdade e a democracia. É claro que naquele tempo não se falava em democracia.


SRD – Falava-se em harmonia.
MO – Era a harmonia. Embora a democracia já existisse na Grécia, anteriormente. É um desejo utópico, é um desejo profundo no homem: um bem-estar, e não esta inquietude permanente de guerras.










SRD – Quem faz este filme é o mais inquieto dos homens.

MO – Não sou, não sou. Sou um sobrevivente como qualquer outro. A arte é um ofício, uma paixão que as pessoas têm. O usurário tem uma paixão pelo dinheiro e junta o dinheiro para nada – é triste. O artista tende ao absoluto; pode também estar numa situação de revolta. Não é exactamente o meu caso, embora muitas vezes me revolte. É claro que o Portugal depois de Alcácer-Quibir é um Portugal devastado; toda a grande nobreza, os guerreiros, pediram aos judeus dinheiro emprestado para pagar o regresso dos que sobreviviam. Não pagaram tudo porque não conseguiram juntar o que lhes pediam, e houve um português que se ofereceu para ficar como refém até que pagassem o resto. Nunca mais veio. O que aconteceu com ele, não se sabe, ou o mataram, ou tiveram piedade... Mas, aí está, «vale mais morrer», há uma coisa superior à própria vida.

SRD – Que é a dignidade.

MO – Ele ficou satisfeito porque salvou milhares de pessoas, sacrificando-se a esse gesto.

SRD – Impressionou-me no D. Sebastião a noção de legado; ele tinha «o desejo de não degenerar os meus antepassados, parecer-me com os meus maiores». É um desejo de glória, é uma ambição.

MO – Veja que os reis eram determinados pelo destino dos deuses, ou de Deus. A batalha de Alcácer-Quibir é a última batalha pelas cruzadas, e ele diz: «Eu sou capitão de Deus». Há um fundo religioso. Como nos santos, não importa a morte, importa é a salvação da alma. Esse é o feito maior: salvar a alma. A alma que se tem por eterna, o corpo é precário. O sentido religioso não pode estar desligado desta ideia de alma e de eternidade, e do retorno ao paraíso, à tranquilidade.

SRD – Tudo isso parece tão pouco mundano...

MO – Pois, isso é que torna a atitude do Sebastião um pouco estranha, justamente fora do contexto mundano. No contexto mundano ele é imprudente, um mau rei. Sacrifica a sua própria alma. A ideia é a de que isso fica como herança para o povo português.

SRD – A ideia do sacrifício?

MO – A da salvação da alma.

SRD – Ou da tentativa da salvação da alma.

MO – Há um esforço nesse sentido, não há garantia disso, não pode haver. São coisas que nos transcendem, de que é difícil falar. Para quem crê é natural, é simples. Para quem não crê, é mais difícil. Porque é que vimos ao Mundo? Ninguém nasceu por vontade própria. Somos lançados ao Mundo, temos que gramar isto quer queiramos quer não. Estamos submetidos às forças enigmáticas da Natureza, ligados umbilicalmente com a Natureza, somos do mesmo processo. Dentro de nós há o mesmo que aconteceu no sudoeste da Ásia: quando estamos irados, é uma tempestade. A Natureza é extremamente caprichosa, dá a uns o que tira a outros. E a gente não sabe porquê. Eu mereço mais? Não mereço mais nem menos, sou como os outros, peco como os outros, gozo como os outros, vivo como os outros.

SRD – Porque é que dá a uns e não dá a outros, porque é que este processo é tão aleatório?

MO – Isso está para além da nossa inteligência e da nossa capacidade. O homem tem um tecto (que os gregos atingiram); para além disso, já não percebemos nada. Somos joguetes do destino. O Espinosa dizia: «Supomos que somos livres porque ignoramos as forças obscuras que nos manipulam.» E S. Paulo: «Se Cristo não ressuscitou, a nossa crença é vã.» Não sabemos: nenhum dos nossos mortos disse qualquer coisa.

SRD – Fala-se muito de amor neste filme como sendo uma coisa terrena. «O amor conduz a excessos e erros». D. Sebastião despreza D. Pedro: «Nada a aprender com ele, porque se perdeu por amor». Há um desprezo pelas coisas terrenas?

MO – O desprezo do rei Sebastião é um desprezo dele. Eu pus até uns versos que foram escritos por mim, sobre a Vénus... A paixão é uma perturbação, o amor é real, é absoluto, é uma coisa estranha. A paixão dá sempre força a um lado, ou é da mulher ou é do homem. O desejo é fazer dos dois, um. O amor a Deus, por exemplo, há uma lenda (ou uma realidade, não sei) em que um santo se ajoelha e está a rezar, e de tal modo se embebe do amor a Deus que acaba terminando: «Meu Deus, come-me!» A vontade é comer o outro, fazer-se um, voltar ao andros... Depois há almas gémeas – que é a parte separada do que era um. São coisas complexas, a gente entra nesse terreno e não sabe trabalhá-lo porque nos ultrapassa. É o lado poético da vida.


SRD – Ao mesmo tempo, há lá coisa mais terrena do que a paixão e o amor?

MO – Pois, mas a santidade inverte essa posição. A santidade está ligada ao sentido verdadeiro de liberdade, é o desprendimento total das coisas terrenas. Agora, se está preso pelo dinheiro, por uma paixão, pelo desejo de uma mulher, por isto, por aquilo, anda sempre agarrado a esta porcaria que é o campo terreno.

SRD – As mulheres são profundamente diferentes dos homens?

MO – São profundamente diferentes, felizmente. Até o cérebro tem uma outra organização. A mulher é extraordinária... Gosto muito da estátua da Vénus de Milo, aí é que está o sentido. Não há nada dela que eu tire para o sexo. O sexo é um prazer, um vício, como fumar, tomar café, beber uma droga. A Vénus de Milo... a gente não sabe a posição das mãos, mas o seio é muito bonito, nada provocativo, nem a cara, que é muito serena, muito feminina; mas o ventre é o que sobressai mais. E é o ventre onde se gera a humanidade. A Agustina Bessa-Luís diz mesmo que Cristo, Deus, nasceu do ventre da mulher. Veja a importância que tem e que se não dá à mulher: a de criar humanidade. E essa estátua, por coincidência, é a mais conhecida de todas as do mundo ocidental.

SRD – Há pouco falava da complexidade, de não termos as coisas na mão. Mas quais são as coisas de todos os dias de que podemos falar?

MO – Falámos nisso, nos poetas. Para mim os poetas chegam mais longe do que os filósofos. As suas poesias contêm segredos que vão para além. A nossa inteligência não é capaz de os desvendar, a gente sente mas não desvenda.

SRD – Os seus filmes têm alguma coisa de cifrado?

MO – Têm muito de cifrado. Têm muito para decifrar, até por mim próprio. O homem é um bocado como o gato, fica preso às casas porque nelas se passaram histórias, e a casa é o guardião de todas essas histórias, problemas, alegrias, etc.

SRD – A sua casa é a sua memória?

MO – É. Fiz um filme que se chama «Memórias e confissões.»

SRD – Aquele que só pode ser visto depois da sua morte?

MO – Sim. Não tem nada de extraordinário, mas tenho um bocado de pudor de estar a falar de mim próprio. É uma recordação de certas coisas da vida e da casa que foi o meu barco durante quarenta anos. Ali vivi com a minha mulher, ali criei os meus filhos, ali ajudei a criar os meus netos. Esse filme está guardado na Itália, está guardado mais não sei onde.

SRD – É como se fosse um tesouro, uma conta na Suíça?

MO – O filme é muito simples. É a minha vida, eu ponho alguns pontos, dou uma ideia do que eram os meus pais.

SRD – Mas se não tem nada de extraordinário por que é que não deixa que se veja o filme?

MO – Acho que tem mais interesse quando não estiver vivo. Mas já mostrei a algumas pessoas.

SRD – Numa entrevista a João Bénard da Costa fala do cinema como arte e como fixação da memória. Decidiu fazer esse filme antes de passar a uma fase diferente, antes de mudar de habitáculo, para registar e guardar o momento anterior?

MO – Ainda há bocado a minha mulher disse que se não adaptou [a esta casa nova], tão vinculada estava à casa da Vilarinha. Casa essa, por acaso, arquitectonicamente de muito interesse, passa em revistas de arquitectura e sempre com o meu nome. Até porque o proprietário não deu o nome dele, tem medo que lhe aumentem os impostos. Eu fico contente, porque aquela era a minha casa.

SRD – Quando rememora o passado, há algum período mais recorrente?

MO – Sabe que a memória é muito caprichosa, fixa umas coisas e não fixa outras. Fixa uma coisa que aparentemente não vale nada e esquece uma coisa que é muito forte. O que retemos na memória é aquilo que o capricho dela reteve, não aquilo que a gente quis reter. Outras vezes há passagens de que a gente não gostaria de falar. Há sempre um segredo, cada um tem um segredo, qualquer coisa que não gosta de ver revelado. Já não pode emendar, de maneira que cala.

SRD – Aspiramos à espiritualidade, mas não prescindimos da perversidade terrestre. Uma vez disse-me que os seus realizadores preferidos são o Dreyer e o Buñuel.

MO – Tenho que o Buñuel era uma pessoa profundamente religiosa. Mas contra a Igreja. O sentimento religioso é uma coisa muito particular, de cada um. A Igreja é uma norma pela qual toda a gente se guia. Ele tem esse sentimento do Deus perverso, que faz o homem dentro de um sofrimento terrível – é isso que ele não suporta, esse mal-estar. O Buñuel dizia: «Enquanto pude, às seis horas da manhã...» fazia o sexo com a mulher dele. «E depois levanto-me, tomo o café, pego no jornal, e para ler tenho que pôr uma lente; depois cansa-me, desisto; a caminhar sou trôpego, ando mal. De maneira que é horrível suportar essa coisa toda. Por fim, aborreço-me até à hora do almoço.» É uma vida triste.

SRD – O que é que o mantém tão entusiasmado? Tem um ar cada vez mais bem disposto.

MO – Acha? Se estou bem, estou bem-disposto, se estou mal, estou mal-disposto, é um estado físico que não controlo.

SRD – Mudou muito?

MO – Mudei muitíssimo. Fui ganhando outra segurança, outra confiança. Eu era muito tímido, reservado, tinha medo daquilo que dizia, medo que aquilo não fosse certo. Mas sobre o que era cinema, sabia muito bem o que queria e o que não queria, muito mais do que agora! Agora tenho mais dúvidas. O Mundo mudou, as coisas mudaram e eu também mudei.


SRD – Até já se permite duvidar...

MO – Ah, pois. É claro que tenho a minhas convicções, mas tenho sempre medo que essas convicções pareçam demasiado particulares, quando eu queria ter uma visão genérica do que é o cinema.

SRD – O reconhecimento e os prémios foram fundamentais para essa confiança que ganhou?

MO – Não. Estou habituado a que recebam mal os meus filmes e isso não me altera, nem altera nada do que penso sobre o cinema. Eu reprovo o prémio da competição. Os óscares, por exemplo, até porque são dados a filmes de sucesso. Gosto mais dos prémios que são dados ao filme como coisa artística. Esse prémio de competição está bem no futebol, que um mete mais golos que o outro. Mas já dizia o Rembrandt quando apresentou o seu quadro «A Ronda da Noite» à sociedade – fizeram muita troça, ele veio desconsoladíssimo: «O militar conhece a sua glória na vitória, o comerciante reconhece a sua glória nos lucros do comércio, mas o pintor, o artista, onde é que ele a vai reconhecer?» Não há nada que determine exactamente. A arte é especial. Há uma só lei: o tempo. O tempo é o grande juiz, é o grande juiz de tudo.

SRD – A pergunta é, no fundo, o que é que fez de si um homem menos inibido e mais seguro de si?

MO – Estou mais convicto. Há uma coisa que gostei de ouvir do Fellini: tinha uma grande admiração pelas pessoas que falham e persistem. Persistem com a mesma vontade ou mais forte, com a ideia de alcançarem a finalidade última. Considero-me um pouco dentro dessa classe. Continuo a ser um aprendiz do cinema, continuo a aprender muito e até com os artistas novos. No cinema cada realizador põe uma nova folha numa frondosa árvore, mas o que sustenta a folha não são os ramos, não é o tronco, são as raízes. É por isso que estimo a história e a memória. É fundamental para a nossa vida, para os nossos juízos.

SRD – E para a identidade.

MO – E para a identidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigada por relembrar esta entrevista ao Mestre.
99 anos de experiência e ainda a inocência...

Anónimo disse...

Tal como o Manoel de Oliveira, também concordo com o Fellini, e espero que a mensagem final vos caia bem no íntimo!